Anteriormente à Emenda Constitucional N? 45, o art. 114 da Constituição Federal dispunha que a Justiça do Trabalho possuía competência material para apreciar os dissídios envolvendo trabalhadores e empregadores, inclusive se estes fossem entes públicos. Acrescentou, ainda, os dissídios decorrentes de outras relações de trabalho, desde que previstas em lei.
O Ex. STF barrou a tentativa
legislativa de se incluir dentre tais relações aquelas
mantidas entre funcionários públicos e o Estado,
quando declarou, através da ADIn 492, a
inconstitucionalidade da alínea "d" do art. 240 da Lei
N? 8.112/90, que previa a competência da justiça
obreira para julgar os conflitos decorrentes de
violações ao estatuto dos funcionários públicos, como
se tais relações não fossem de trabalho, mas meramente
de natureza administrativa, por não ser o poder
público considerado empregador, senão quando
contratando pelo regime celetista.
Com o advento da Emenda Constitucional N? 45,
manteve-se a expressão "relação de trabalho", tendo
sido suprimida a expressão "empregador".
Embora aparentemente sutil a alteração do texto, esta importa em substancial ampliação da competência da Justiça do Trabalho, não mais se exigindo que do outro lado da relação exista necessariamente um empregador, mas qualquer pessoa que, de uma forma ou de outra, tenha se utilizado do trabalho de outra pessoa, ainda que jurídica.
Com isso, entendo, inclusive, que os funcionários públicos estatutários estão incluídos dentre aquelas pessoas que podem discutir suas relações mantidas com o Estado, perante a Justiça do Trabalho, já que não mais é exigida a condição de "empregador" deste e, inequivocamente, existe uma relação de trabalho, deixando de haver o argumento principal utilizado pelo STF por ocasião do julgamento da ADIn 492.
Não obstante isso, mais uma vez, o Ex. STF, concedendo liminar em uma ação ajuizada pela Associação dos Juízes Federais, aplicando uma "interpretação conforme", e invocando a decisão anterior, proferida na ação acima mencionada, em situação totalmente diversa, declarou que esta competência, mesmo após a alteração do texto constitucional, não é da Justiça do Trabalho.
A questão, ao meu ver, dispensa maiores comentários.
O segundo aspecto que pretendo aqui abordar, diz respeito ao questionamento sobre se, com a ampliação da competência, a Justiça do Trabalho passa a apreciar todos os dissídios envolvendo relações em que se faça presente qualquer tipo de trabalho.
Acontece que, seguindo tal linha de raciocínio, podemos nos deparar com aquelas situações em que as relações estejam tuteladas pelo direito do consumidor.
Daí, é fundamental que se trace uma linha divisória entre uma coisa e outra, principalmente no sentido de se definir qual a prevalência que há em determinada relação.
Em se tratando de uma situação em que prepondere a relação fornecedor-consumidor sobre a relação trabalhador-contratante, obviamente a relação é consumerista e, portanto, sujeita à apreciação pelo juiz de direito comum ou federal, dependendo do caso, conforme dispõe o art. 93, da Lei N? 8.078/90.
Isso ocorre quando o prestador lança
um serviço no mercado de consumo, sendo os sujeitos do
conflito pessoas que intervêm na relação de consumo,
ou seja, quando há fornecimento de bem ou serviço ao
consumidor final.
Destarte, não estão sujeitos à nova competência da
justiça obreira aqueles litígios decorrentes de
serviços que sejam objeto de contratos firmados entre
fornecedores e consumidores.
Segundo a dicção do art. 2? da Lei N? 8.078/90,
"Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que
adquire ou utiliza produto ou serviço como
destinatário final" e define o art. 3? o fornecedor
como sendo "...toda pessoa física ou jurídica
...."omissis"....que desenvolvem atividades de
produção, montagem, criação, construção,
transformação, exportação, distribuição ou
comercialização de produtos ou prestação de
serviços".
Define, ainda, o serviço (art. 2? ? 2?), como sendo "... qualquer atividade fornecida ao mercado de consumo, mediante remuneração...."omissis".... salvo os decorrentes das relações de caráter trabalhista".
Na lição de José Affonso Dallegrave Neto, "in" Nova Competência da Justiça do Trabalho, a grande distinção está em saber se o contratante do trabalho contrata o prestador de serviço para viabilizar a atividade empresarial do tomador, agregando valores à empresa, quando se dá a relação de trabalho, ou contrata para usufruir exclusivamente de seu serviço na qualidade de destinatário final do seu produto, suprindo uma necessidade pessoal do tomador, quando ocorre a relação de consumo.
Salienta, ainda, que naquelas situações em que o contratado é um fornecedor de serviço ao público em geral, no mercado de consumidores, a relação é de consumo, enquanto na situação em que o contratado guarda intenso grau de dependência econômica para com o seu contratante, trata-se de relação de trabalho.
Nos dizeres, ainda, do ilustre articulista, "Os contratos de consumo é o mais acabado exemplo dos contratos padronizados e de adesão...." (sic).
Outros fatores específicos de distinção residem na fixação da idéia de que a relação se dá sob o enfoque do prestador, situação em que a relação é de trabalho, ou sob o enfoque do tomador, em que a relação é de consumo.
Na primeira situação a relação é orgânica e essencialmente de trabalho.
Já na segunda situação, em que o trabalhador presta serviços ao público em geral, em amplo mercado aberto consumidor, o trabalho é meramente residual ou acessório do contrato.
Alguns exemplos, inclusive em parte citados por Dallegrave, podem deixar mais clara a idéia de relação de trabalho e relação de consumo.
Assim, o taxista mantém com o seu cliente uma relação de consumo e com a cooperativa à qual está vinculado, uma relação de trabalho.
Também uma relação de consumo típica é aquela travada entre um dentista e o seu cliente, enquanto a relação mantida com a clínica em que presta seus serviços é de trabalho.
Ocorreria o mesmo com o representante comercial autônomo, na relação com o seu cliente ou com a empresa representada, ou com o corretor de seguros, em relação ao cliente e à seguradora, dentre outros exemplos.
Não na mesma linha dos exemplos anteriores, mas nem por isso de menor importância, podemos, ainda, citar aquela situação em que se contrata uma empresa de paisagismo que coloca os seus serviços no mercado de consumo em geral, para elaboração e execução de um projeto paisagístico, sem qualquer aspecto de pessoalidade. Não seria o mesmo que contratar os serviços de um jardineiro com intenso grau de dependência e pessoalidade em relação ao tomador.
Portanto, entendo que a competência
da Justiça do Trabalho não pode desprezar a ótica sob a
qual a questão deve ser enfocada.
Se a relação deve ser vista sob o ponto de vista da
aplicação do código do consumidor, situação em que o
tomador dos serviços é mais comumente chamado de
cliente, a relação é de consumo e, conseqüentemente,
não sendo relação de trabalho, a competência para
apreciar as demandas dela oriundas não é da Justiça do
Trabalho.
A mudança constitucional objetivou incluir milhões de trabalhadores hipossuficientes que necessitavam de uma tutela jurisdicional específica e célere, pois muitas vezes os litígios versavam questões verdadeiramente alimentares, e que não se enquadravam dentre aqueles que poderiam recorrer à Justiça do Trabalho, e nem se acobertavam da proteção dispensada pelo código do consumidor, como era o caso dos diaristas, representante comercial, trabalhador autônomo cujo trabalho é explorado economicamente por outrem, como o médico, em relação ao hospital, o advogado em relação ao escritório de advocacia, um escritor em relação ao jornal, o repórter "free lancer", o trabalhador autônomo que presta serviços e que constitui uma atividade empresarial precária, como o encanador, o jardineiro, o pequeno empreiteiro, dentre outros exemplos.
Conforme pontua Jorge Luiz Souto Maior "in" Nova Competência da Justiça do Trabalho, "...a existência da Justiça do Trabalho continua se relacionando à regulação de conflitos entre o capital e o trabalho, atingindo a partir de agora, outras formas de exploração da mão-de-obra que se foram criando ao longo dos anos e que não se incluem, por qualquer razão, no padrão jurídico da CLT".
Na mesma obra, o articulista especifica que não se incluiriam na nova competência trabalhista, "...os conflitos oriundos das relações jurídicas que se formam entre um médico e seu paciente; entre o passageiro e o taxista; entre o advogado e seu cliente; entre duas empresas, em que uma se compromete a prestar serviços à outra (a não ser que os serviços sejam prestados pessoalmente e for marcante a precariedade empresarial da prestadora); entre uma empresa e um ente estatal, no que se refere à execução de determinados serviços (com a mesma ressalva anterior); entre o dono da obra e a construtora; entre uma oficina mecânica e o dono do automóvel; entre o proprietário de um computador e a empresa de computação, que lhe presta assistência".
Não se pode, pois, perder de vista a ênfase que se deve dar à questão quanto ao fato de o bem tutelado maior dizer respeito à relação de consumo ou à relação de trabalho.
Ao meu ver, sempre que o tomador dos serviços puder ser chamado de cliente, paciente, passageiro, ou coisa do gênero, existirá uma relação de consumo.
Nos dizeres do ilustre jurista Márcio Túlio Viana, no Seminário Sobre a Nova Competência da Justiça do Trabalho, "Quando o Código de Defesa do Consumidor protege o consumidor, na verdade, ele está protegendo o trabalhador, ou seja, o hipossuficiente, que acabou de sair do âmbito de sua família, onde passou por uma relação de consumo, para reencontrar o capital em um outro momento".
Assim, considerando que tanto as
leis trabalhistas quanto o código consumerista têm o
objetivo de proteger, de certa forma, aqueles que
seriam considerados hipossuficientes, restabelecendo o
equilíbrio de forças entre aqueles detentores de menor
poder econômico e aqueles detentores de tal poderio,
seja no mercado de trabalho, seja no mercado de
consumo, haveria o chamado "corte epistemológico", ao
se conceber que a lei protegeria desprotegendo o
hipossuficiente.
Portanto, a tutela trabalhista não tem por escopo
proteger qualquer relação, mas apenas aquela em que o
trabalhador precisa de tal proteção.
O jurista Moysés Simão Sznifer, em ensaio publicado no "site" na Anamatra http://www.anamatra.o rg.br, defende a competência da Justiça do Trabalho, mesmo em situações em que seja necessária a aplicação do Código do Consumidor.
Entende, porém, que quando o
prestador for uma pessoa jurídica, essa competência
deve se deslocar para a justiça comum.
Com efeito, transcrevo trecho do seu texto:
"Todavia, cumpre referir que sendo contratada uma pessoa jurídica como prestadora de serviço a solução de uma eventual controvérsia que surgir com o contratante do serviço escapará ao âmbito de competência do judiciário trabalhista, pois, em face da Constituição Federal(art.114, inciso I), será necessária a existência de uma Relação de Trabalho para atrair a competência material da Justiça do Trabalho, vale dizer é imprescindível que a prestação de serviço seja pessoal, contratada e realizada por uma pessoa natural".
E arremata:
"Dessa forma, sem sombra de dúvida
podemos concluir este singelo estudo afirmando que, em
razão da alteração procedida no texto constitucional
pela Emenda nº 45/2004, foram incluídas na competência
material da Justiça Trabalho processar e julgar as
demandas que envolvam a prestação pessoal de
serviços...", ou seja, exclui aqueles prestados por
pessoas jurídicas.
Apenas acrescentaria que aquelas pessoas jurídicas
que mais parecem pessoa física, onde há a prestação
pessoal de serviços, também devem receber o mesmo
tratamento que pessoa física.
Por outro lado, existem prestadores de serviços que possuem fachada de pessoa física, mas, na verdade, se incorporam em verdadeiras pessoas jurídicas, cuja prestação de serviços não deve se submeter ao judiciário obreiro.
Deve, pois, ser tutelado perante a Justiça do Trabalho, com a nova competência, a relação mantida pela pessoa física não subordinada, a chamada paraempresa (quase empresa, que possui corpo de pessoa jurídica mas espírito de pessoa física), enfim, todo aquele prestador que mais se assemelha a artífice ou operário, excluindo-se aqueles que tenham prestado serviços a outrem quando estejam reunidas duas características: prestação ao destinatário final do serviço e serviço prestado no amplo mercado consumidor em geral.
Proteger o tomador de serviços, ao invés do trabalhador, por outro lado, contrariaria toda a essência da Justiça do Trabalho.
Não se poderia, outrossim, cindir
duas competências para uma única relação jurídica.
Isso ocorreria, tanto no momento em que a Justiça do
Trabalho apreciasse a questão apenas sob o ponto de
vista do pagamento pelo trabalho, remetendo para a
Justiça Comum a análise acerca da qualidade dos
serviços prestados, decorrentes de um mesmo contrato,
quanto no momento em que se deslocasse para o
judiciário obreiro os litígios decorrentes do
fornecimento de serviços, deixando com o judiciário
comum aqueles que decorressem do fornecimento de bens,
estando ambos sujeitos a uma mesma regência
jurídica.
Concluindo, não se pode atribuir à justiça obreira a competência para dirimir aquelas questões em que o devedor seja um cliente, consumidor, paciente, passageiro, dentre outros e que se tenha necessariamente ou eventualmente que se recorrer a preceitos do Código de Defesa do Consumidor para que se encontre a solução do conflito, já que estaríamos diante de uma relação de consumo e não de trabalho.