Relator da ação no STF (Supremo Tribunal Federal) que vai decidir sobre a legalidade da pejotização, o ministro Gilmar Mendes voltou a se posicionar favoravelmente a esse modelo de contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas, cada vez mais utilizado pelos patrões para fraudar os direitos trabalhistas. As declarações foram feitas pelo ministro durante um evento empresarial em Brasília, nesta quarta-feira (27), o Fórum Empresarial Lide. Mendes defendeu a flexibilização das relações de trabalho e afirmou que "não se pode preservar pela caneta relações jurídicas de emprego que já desapareceram". Ironicamente, taxou ainda a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) como "vaca sagrada". O ministro criticou também a Justiça do Trabalho, que concedeu decisões reconhecendo vínculos empregatícios ao identificar pejotizações fraudulentas. "A insistência em manter modelos ultrapassados de regulação de trabalho gera insegurança jurídica, mina a livre iniciativa e contamina o ambiente econômico em prejuízo do próprio valor social do trabalho que em tese se busca proteger", disse.
À CNN, o ministro confirmou que o recurso, que terá repercussão geral (Tema 1.389), pode ser votado ainda esse ano. Segundo ele, a busca é por construir um "consenso" entre os ministros do Tribunal para que, ao invés de votos individuais, todos contribuam para elaborar um texto a partir da proposta do relator. Mendes marcou para 6 de outubro uma audiência pública sobre o tema, que reunirá setores empresariais e representantes da sociedade civil para apresentar suas visões sobre a pejotização. Não é modernização. É fraude Ao defender a pejotização em nome da "livre iniciativa", da "modernização das relações de trabalho" e do "ambiente econômico", Gilmar Mendes não faz mais do que repetir o falso argumento dos setores empresariais interessados na liberação geral da pejotização. Mas para auditores-fiscais do trabalho, juízes trabalhistas, procuradores e sindicatos, longe de ser uma "modernização inevitável", a pejotização representa a institucionalização da fraude e o desmonte de direitos historicamente conquistados pela classe trabalhadora.
As inspeções do Ministério do Trabalho têm constatado um número crescente de pejotizações irregulares em todo o país, informou o auditor-fiscal Leonardo Decuzzi, diretor de Assuntos Parlamentares do Sinait (Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho), em entrevista à Agência Senado. "Até algum tempo atrás, eram principalmente os profissionais mais especializados e qualificados que trabalhavam como pessoas jurídicas para outras empresas, entre os quais os médicos e os diretores de grandes companhias. Isso mudou. A pejotização se espraiou e agora atinge majoritariamente os trabalhadores de baixa renda. O que se vê é uma verdadeira pandemia de precarização do trabalho", disse. Um estudo do Ministério do Trabalho, divulgado em junho, mostra que, de todas as pejotizações fraudulentas detectadas pelos auditores-fiscais do Trabalho, entre 2022 e 2024, cerca de 56% envolveram trabalhadores com remuneração mensal de, no máximo, R$ 2 mil.
O mesmo levantamento aponta que a pejotização é mais frequente entre pessoas que atuam, por exemplo, como vendedores do comércio, garçons, operadores de centros de distribuição de mercadorias, secretárias de escritório, trabalhadores da construção civil e atendentes de telemarketing. No mesmo período, cerca de 4,8 milhões de celetistas foram transformados em pessoas jurídicas, muitas vezes na mesma função e até na mesma empresa. O juiz trabalhista Marco Aurélio Marsiglia Treviso, vice-presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), lembrou que a pejotização só é legítima quando há autonomia real: possibilidade de o trabalhador definir horários, valores do serviço e até delegar tarefas. Porém, quando se verificam os requisitos da relação de emprego previstos na CLT - pessoalidade, subordinação, habitualidade e onerosidade - , trata-se de fraude. "Não importa se o contrato o chama de prestador de serviço.
Se há vínculo, a carteira deveria estar assinada", explicou em entrevista à Agência Senado. As consequências desse modelo aparecem também na Justiça. Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) os processos trabalhistas pedindo reconhecimento de vínculo mais que dobraram em quatro anos: de 167 mil, em 2020, para 443 mil, em 2024. Apenas no primeiro semestre deste ano, foram 234 mil ações foram ajuizadas. Trabalhadores precisam ir à luta contra pejotização Em recente participação no seminário "O Trabalho na Era das Transições", no último dia 15/8, realizado pela Faculdade de Direito da USP, o ministro e presidente do STF Luís Roberto Barroso também defendeu a flexibilização dos direitos trabalhistas. "Nós temos um mundo novo em que há um mercado de trabalho que não é mais o metalúrgico", disse ele, conforme destacou o portal Jota. Leia: Em evento na USP, com presença de Barroso, CSP-Conlutas protesta contra pejotização Em sua palestra, chegou a dizer que muitos trabalhadores de aplicativos (chamados por ele de microempreendedores) não querem a proteção da legislação trabalhista.
O fato é que o STF tem se colocado como fiador da reforma trabalhista de 2017 e, nos últimos anos, cada vez mais decisões da Corte têm validado a flexibilização e o fim de direitos duramente conquistados pela classe trabalhadora. "Sabemos o lado de classe dessa instituição do Estado burguês e por isso não é novidade o alinhamento dos ministros do STF à lógica neoliberal que visa flexibilizar e extinguir os direitos trabalhistas. Mas o que temos visto é que essa postura tem se aprofundado cada vez mais", afirmou recentemente Atnágoras Lopes, integrante da Secretaria Executiva Nacional da CSP-Conlutas. Para Atnágoras, diante desse cenário, é fundamental que sindicatos, movimentos sociais, juristas progressistas e toda a classe trabalhadora se mobilizem para denunciar e resistir a mais esse ataque. "É preciso luta para impedir que o STF legitime a pejotização e todo esse desmonte da proteção ao trabalho, assim como para exigir do governo Lula a revogação das reformas trabalhista e da Previdência e outras medidas como a lei da terceirização irrestrita que, inclusive, têm embasado os ataques do STF e demais instâncias do judiciário", afirmou.