Após três anos de implementação pelo CNJ, tribunais como o TJRS e TJDFT aplicam o programa, enquanto entidades sindicais e Justiça do Trabalho o rejeitam
Foto: Nelson Júnior/Ag. CNJ Foto: Nelson Júnior/Ag. CNJ
Aprovada em janeiro de 2022 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Resolução nº 439 autorizou tribunais de todo o país a instituírem programas de "residência jurídica", modelo inspirado na residência médica.
A proposta que visa a oferecer formação prática supervisionada a bacharéis em direito recém-formados, com até cinco anos de graduação ou em curso de pós-graduação, mediante bolsa-auxílio, carga horária reduzida e atuação junto a magistrados, encontra resistências e divide opiniões, por representar a precarização das relações de trabalho no judiciário.
O programa prevê seleção pública, atuação de até 30 horas semanais sob orientação de juízes e duração máxima de 36 meses.
Apesar de ser apresentado como uma oportunidade de qualificação profissional, entidades representativas de servidores e especialistas apontam riscos à estrutura dos tribunais e à valorização do serviço público.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) lançou em 2024 seu primeiro processo seletivo de residência jurídica. Inicialmente, foram oferecidas 100 vagas, com possibilidade de ampliação conforme a disponibilidade orçamentária e critérios administrativos. Os residentes recebem uma bolsa mensal de R$ 3.163,82 e não possuem vínculo empregatício com o tribunal.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) também aderiu ao programa, publicando edital em maio de 2025.
A estrutura segue o mesmo padrão proposto pela resolução do CNJ: seleção pública, supervisão de magistrados e foco no desenvolvimento profissional dos residentes.
Por outro lado, a Justiça do Trabalho não implementou o programa. Segundo a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), o CNJ entendeu que a regulamentação específica da residência jurídica nesse ramo depende de deliberação do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), o que ainda não ocorreu. Dessa forma, os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) não aplicam, até o momento, o modelo proposto.
Doutora em Direito do Trabalho pela USP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região e professora de Direito e Processo do Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Valdete Souto Severo, avalia que, embora o programa se apresente como um instrumento de formação prática para egressos do curso de Direito, na prática, representa uma forma de precarização das relações de trabalho no serviço público.
"A residência jurídica, voltada a profissionais já graduados, pode representar uma forma de precarização do serviço público, similar àquela observada em cargos em comissão. Os tribunais de justiça se utilizam dessa forma de contratação, enquanto a Justiça do Trabalho resiste. Mas até quando ela consegue resistir?", indaga.
Acesso à carreira judiciária sem concurso
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Enquanto cresce a adesão por parte de tribunais estaduais e federais, intensifica-se também o debate sobre os limites e impactos do programa. Entidades como o Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no RS (Sintrajufe/RS) vêm se posicionando contra o formato da residência jurídica. A principal crítica gira em torno da substituição de servidores concursados por residentes com vínculo precário, o que, segundo o sindicato, desestrutura a lógica do serviço público e reduz garantias trabalhistas.
O Sintrajufe/RS ressalta que os residentes recebem bolsas que podem representar apenas um sexto do salário de um analista judiciário efetivo, sem qualquer estabilidade, proteção contra assédio moral ou direitos assegurados pelo concurso público. Na visão do sindicato, o programa pode ser utilizado como um atalho para suprir carências de pessoal nos tribunais, mas com mão de obra barata e sem as devidas garantias.
Valdete Severo reforça essa crítica ao apontar que a residência jurídica, assim como estágios e cargos comissionados, representa uma forma de ocupação de postos no Judiciário sem a realização de concurso público.
"Todas essas modalidades constituem formas de ocupação de postos de trabalho no âmbito da administração pública, especificamente no Poder Judiciário, sem a necessidade de concurso público. Consequentemente, essas formas de contratação não garantem carreira, estabilidade ou a remuneração assegurada aos servidores públicos", complementa a professora da Ufrgs.
Para os defensores da residência jurídica, trata-se de um mecanismo legítimo de formação complementar, que oferece a jovens bacharéis experiência prática relevante, sob a supervisão direta de magistrados. Já para os críticos, o programa esconde uma tentativa de suprir déficits estruturais do Judiciário com profissionais desprotegidos e em início de carreira.
A divergência de interpretações entre os entes institucionais e os sindicatos evidencia uma lacuna regulatória no modelo adotado. Enquanto a resolução estabelece diretrizes gerais para o funcionamento da residência jurídica, aspectos como a fiscalização, os limites da atuação dos residentes e os critérios de avaliação ainda geram incertezas. Além disso, não há uniformidade entre os tribunais quanto à aplicação do programa, o que dificulta comparações e avaliações nacionais mais consistentes.
Especialistas apontam que a ausência de um marco legal mais robusto abre margem para desvirtuamentos. Segundo Valdete, modelo pode contribuir para o aprendizado dos recém-formados, mas alerta que isso só é possível se houver controle institucional efetivo e respeito aos princípios do serviço público.
Desde 2022, o CNJ vem incentivando os tribunais a adotarem medidas de modernização e eficiência, diante do aumento da demanda judicial e dos limites orçamentários. Nesse contexto, a residência jurídica surge como alternativa de reforço às equipes, com menor custo e foco na formação de novos profissionais. No entanto, o modelo segue cercado de polêmicas, especialmente entre aqueles que enxergam na proposta uma ameaça à valorização do servidor público concursado.