Disputas em torno da Lista Suja do trabalho escravo têm mobilizado periodicamente políticos, empregadores, poder público, judiciário e sociedade civil, opondo claramente opositores e defensores deste instrumento criado em novembro de 2003 pelo Estado brasileiro. Nos últimos meses, ao aproximar-se o lançamento do III Plano Nacional de Erradicação do Trabalho escravo, uma grave divergência surgiu, desta vez entre parceiros da construção desta política pública essencial, a quem a CPT conclama para um caminho de entendimento em nome da política pública conquistada a duras penas.
"Lista Suja" é o nome popular do cadastro que dá publicidade, por no mínimo dois anos, aos nomes dos "empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas às de escravo", implicando em consequências potencialmente devastadoras aos incluídos, como a suspensão de financiamento por parte das instituições públicas e, a critério de clientes e de compradores empresariais, a suspensão de negócios.
O motivo da discórdia é a Portaria Interministerial n°18 de setembro de 2024, republicada com algumas alterações em maio de 2025. Nela, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e Ministério da Igualdade Racial estabelecem a criação de um cadastro paralelo à Lista Suja, que seria abastecido com os nomes de empregadores que assinassem um acordo com a União. Ou seja, esses empregadores, autuados pela prática de trabalho escravo, receberiam uma chance de se redimir, desde que assumissem alguns compromissos, dentre eles o pagamento de indenizações.
Apesar de inovar positivamente ao definir parâmetros mínimos bem mais altos para verbas reparatórias destinadas a vítimas ou à coletividade, essa nova portaria logo se tornou alvo de sérios questionamentos por parte de entidades da sociedade civil (além da CPT, da Anamatra, as atuais representantes da sociedade civil na Conatrae) e, de modo singular, por parte do Ministério Público do Trabalho (MPT).
O primeiro questionamento é quanto à inclusão, na mediação dos acordos, de um direito de ingerência em favor do Ministro do Trabalho (Art. 5, §8, "ouvido o Ministro"): por se tratar de matéria administrativa cujo caráter deveria ser meramente técnico, a possibilidade de favorecimento político não é aceitável.
O segundo é a divisão do cadastro em dois. Os empregadores signatários de um acordo poderão constar em uma segunda lista que, paradoxalmente, teria cara de uma "lista limpa".
O terceiro questionamento contesta fundamentalmente os princípios da própria portaria. Segundo a análise do MPT, ela provoca uma invasão na competência do Ministério Público: a de compor acordos em atenção a interesses difusos, transindividuais ou de terceiros, os quais somente ele (como também poderia um sindicato ou uma associação) tem missão constitucional para representar, como ocorre na prática bem estabelecida dos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC).
Em cenário qualificado de "disruptivo" por representantes do MPT, a sobreposição de competências entre Executivo e Ministério Público irá gerar confusão nos tribunais e incentivar o chamado 'fórum shopping', uma prática que deixaria ao critério oportunista de cada empregador que cometeu trabalho escravo a escolha do acordo mais conveniente, com a sucessão de litígios que isso é suscetível de alimentar. Essa possibilidade de escolha incidiria, inclusive, sobre esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho, já que se poderia argumentar que não está mais nela o fórum competente para mitigar essa disputa.
O debate tomou ares de grave tempestade, pois toca em questões fundamentais, porém complexas, e porque envolve parceiros de uma luta ferrenha contra o trabalho escravo, travada em conjunto e com paixão há mais de 30 anos.
Em coerência com os princípios da transparência social, a Lista Suja se tornou um instrumento essencial no combate ao trabalho escravo, sendo considerado pela comunidade internacional como uma política pública de vanguarda. Por isso também se tornou um pesadelo para alguns setores patronais a quem o compromisso com a dignidade de trabalhadores e trabalhadoras nunca foi prioridade. Desde a sua criação, não foram poucas as tentativas para inibir a existência ou a consistência da Lista Suja. Por 18 meses, entre dezembro de 2014 e maio de 2016, sua publicação ficou suspensa pelo STF até ser de novo autorizada, e sua constitucionalidade ser finalmente reconhecida em setembro de 2020.
Desde cedo, existiram tratativas e pressões do setor empresarial no intuito de oportunizar um "tratamento especial" para aqueles empregadores que se dispusessem a assinar "compromissos de mudança", a serem pactuados com a União: não se trataria de "sair" do cadastro, mas, sim, de ter o nome transferido para um anexo específico, igualmente publicizado. Ao longo dos anos, a mão forte do Executivo não perdeu oportunidades para tentar aliviar a dor de empresas de peso, especialmente na gestão Temer e na gestão Bolsonaro. O cúmulo veio com a Portaria n°1129 de 13/10/2017, na qual se tentou desvirtuar a definição legal do trabalho escravo.
Frente às reais ameaças quanto à efetividade deste instrumento, e em atenção ao entendimento produzido junto ao STF, construiu-se o argumento de que seria preciso disciplinar de forma clara a gestão da Lista Suja. No entanto, isso não pode ser usado para enfraquecer o instrumento, muito menos para o favorecimento político e econômico de empregadores que atentaram contra a dignidade de trabalhadores e trabalhadoras, violando seus direitos mais fundamentais, e cometendo crime previsto, inclusive, no Código Penal Brasileiro.
Quando perde a Lista Suja, comemoram os modernos escravagistas que, ao mesmo tempo em que sairão bem na foto, irão apreciar a exposição de nossa impotência em encontrar uma posição sensata e coerente com as práticas firmadas há anos, pautada em efetiva repressão e em justas reparações.
E continuará emperrado nosso novo Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, pronto para ser lançado depois de mutirão de três anos, prejudicando o avanço de outras ações e inovações para oferecer caminhos de vida digna a trabalhadores e trabalhadoras.