Pressionados por governadores e prefeitos, deputados federais preparam-se para sacramentar um assalto a milhares de credores dos municípios e dos Estados. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 12/2006, também conhecida como PEC do Calote, foi aprovada no Senado e já chegou à Câmara dos Deputados, onde foi encaminhada à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Se for convertida em lei, os governos estaduais poderão destinar ao pagamento de precatórios - débitos já confirmados pela Justiça - apenas 2% de sua receita corrente líquida. Para as prefeituras, a obrigação não passará de 1,5%.
Como consequência, pessoas desapropriadas poderão levar décadas para receber a compensação, apesar de terem seu direito reconhecido por um tribunal, e muitas delas provavelmente não viverão o bastante para ver esse dinheiro.
"Alongar o pagamento e limitar o orçamento para precatórios tira o poder do Judiciário de decidir. É uma afronta à Justiça e às decisões já transitadas em julgado", disse recentemente o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Cláudio José Montesso. Se a PEC 12 for aprovada tal como está, o Estado do Espírito Santo levará mais de 100 anos para pagar a dívida atual, segundo o presidente da Anamatra.
De acordo com estimativa divulgada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a dívida de precatórios da União, dos Estados e dos municípios deve estar em torno de R$ 100 bilhões. A dívida do Estado de São Paulo tem sido estimada em torno de R$ 18 bilhões.
Aprovada no Senado em 1º de abril, a PEC foi recebida na Câmara oficialmente no dia 14. No dia seguinte já foi nomeado o relator do projeto na CCJ, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). A rapidez no encaminhamento da matéria é compatível com a pressa de governadores e prefeitos, pressionados por ações de bloqueio de verbas para pagamento de precatórios.
O calote é velho, porque as dívidas se acumularam durante décadas tanto nas prefeituras quanto nos governos estaduais. Prefeitos e governadores desapropriaram imóveis para a execução de obras e não se preocuparam com o pagamento aos proprietários.
O assunto foi regulado pelos constituintes de 1988, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Emendas constitucionais em 2000 e 2002 trataram novamente do assunto, assim como resoluções da Justiça Federal.
Nenhuma dessas medidas, apesar da previsão de parcelamentos, impediu a acumulação de precatórios, nos anos seguintes, nem levou os governos estaduais e municipais a tratar com respeito as decisões judiciais.
A pressão dos credores aumentou ultimamente, com vários bloqueios de receita obtidos na Justiça contra governos municipais e estaduais. Daí a ansiedade demonstrada por governadores e prefeitos.
A aprovação da PEC do Calote iniciará uma nova era de completa irresponsabilidade fiscal no País, comentou na sexta-feira o vice-presidente do Conselho Federal da OAB, o tributarista Vladimir Rossi Lourenço.
"Estados e municípios poderão promover desapropriações, contratar obras públicas e não honrar os compromissos, exatamente por antever que os valores não pagos poderão ser transformados em precatórios judiciais e, dessa forma, não ser pagos nunca", afirmou.
A PEC estabelece também a possibilidade de leilões de direitos. Quem quiser renunciar a uma parte de seus créditos poderá vendê-los com deságio a quem tiver meios de negociar compensações com a entidade devedora. Segundo o vice-presidente da OAB, essa possibilidade equivale a uma violação da coisa julgada.
A aprovação da PEC do Calote poderá inaugurar, no entanto, algo pior que uma era de completa irresponsabilidade fiscal. Se o poder público puder desapropriar livremente, sem a obrigação de realizar o pagamento correspondente num prazo minimamente aceitável, os brasileiros passarão a conviver com o confisco legalizado.
A experiência do confisco de fato já foi vivida por um enorme número de famílias. Propriedades adquiridas ou construídas com a poupança acumulada em décadas de trabalho e sacrifício foram simplesmente tomadas por Estados e municípios. Mas até agora subsiste pelo menos a esperança, embora tênue, de algum ressarcimento. Com a PEC 12 nem isso restará.