1. Exposição de motivos
Nos últimos 20 anos, em razão do avanço das tecnologias de informação e comunicação (TIC), as formas tradicionais de conformação do trabalho humano e do Direito foram confrontados por novas realidades. A volta do teletrabalho e sua regulação ganhou expressiva dimensão, mormente quando da eclosão do estado pandêmico decorrente da Covid-19.
No mercado de trabalho, a prestação de serviços por meio de plataformas digitais tem se popularizado, a ponto de já se caracterizar como um modo de escolha padrão para alguns segmentos econômicos da sociedade (1), em detrimento das formas tradicionais de relação de trabalho, levando a nova oposição entre regulação do trabalho e liberdade econômica.
Os impactos decorrentes dessas transformações sobre o mercado de trabalho, motivadas também pela acentuada automação e utilização da inteligência artificial, ainda são difíceis de mensurar, mas é inegável que essas tecnologias instauraram uma nova dinâmica produtiva, baseada em tarefas sob demanda, de curta duração, remuneradas por produção e sem proteções trabalhistas tampouco previdenciárias, que alijam o trabalhador das proteções inerentes ao trabalho decente, num revival do “putting out”.
Estima-se que até 2025, apurando-se o crescimento de apenas cinco segmentos econômicos sozinhos, ligados ao segmento de viagens, compartilhamento de veículos, recursos humanos, finanças e streaming de vídeo e música, terão potencial para aumentar suas receitas dos atuais U$ 15 bilhões de dólares para U$ 335 bilhões (2), o que denota que a prestação de serviços intermediada por dispositivos tecnológicos não se trata de uma tendência socioeconômica passageira (3), sendo indispensável, portanto, compreender e intervir democraticamente nessa nova realidade.
Na literatura, não há consenso sobre a terminologia a ser adotada para identificar essa nova e emergente economia, que se fundamenta na contratação de bens e serviços por meios tecnológicos, sendo encontradas inúmeras expressões, que ora são empregadas como sinônimas, ora com significados diferentes, dentre elas destacam-se economia de compartilhamento e capitalismo de plataforma.
Por economia de compartilhamento, entende-se como um modelo alternativo de produção, criado em substituição ao modelo padrão do capitalismo industrial, por meio do qual se busca o compartilhamento de bens e serviços entre os usuários (4), criando-se um novo arquétipo no que se refere à noção de propriedade, que, se antes era orientada para o uso próprio, agora passa a ser empregada com o viés de uso compartilhado, despertando um ânimo altruísta em favor da partilha entre iguais de qualquer coisa que se encontre ociosa (5) .
Já a expressão capitalismo de plataforma tem sido empregada como um novo modelo de negócios que se vale da intermediação eletrônica da prestação de serviços para organizar a produção e arregimentar a força de trabalho, embasando a formação de uma atividade empresarial, com finalidade eminentemente lucrativa em favor dos titulares e usuários das plataformas digitais.
A imprecisão terminológica com que os termos são utilizados, somada à ampla variedade de atividades que cada plataforma digital desenvolve, dificulta a compreensão sobre o fenômeno bem como a construção de respostas reguladoras apropriadas, uma vez que as empresas tecnológicas, valendo-se de vazios regulatórios, exercem sua própria regulamentação, a qual é imposta aos usuários, a partir da aceitação da política de privacidade e dos termos de uso apresentados pelas plataformas, além de intensiva difusão de propaganda.
Esse conjunto de fatores explica a divergência doutrinária e jurisprudencial, encontrada sobre a questão do enquadramento jurídico das relações de trabalho intermediadas por plataformas digitais, quer no plano nacional, quer internacional.
Compreender as novas dinâmicas produtivas por meio de plataformas digitais e suas implicações sobre o trabalho humano é tema que ocupa cada vez mais espaços de discussão no âmbito das ciências humanas e sociais, sendo questão de primeira ordem, portanto, conhecer os mecanismos por meio do qual a tecnologia e o trabalho se imbricam, com o fito de desvelar os desafios e soluções para se promover o trabalho decente, em caráter nacional e internacionalmente, uma vez que as fronteiras estatais sucumbiram definitivamente em razão das novas tecnologias.
Além da compreensão sobre a prestação de serviços por meio de plataformas digitais e a necessidade de proteção do trabalhador, tema que desperta grande interesse é o uso da inteligência artificial no âmbito jurídico. Questões como a utilização de inteligência artificial na jurisdição, jurimetria, blockchain, há muito deixaram de ser mera especulação para se incorporar à dinâmica cotidiana de tribunais e escritórios de advocacia, onde, por exemplo, robôs tem sido utilizados para realizar tarefas repetitivas e movimentar ações, em favor da celeridade e efetividade processual. É o caso do Vitor (6), do Bem-te-vi (7) e do Sapiens (8), robôs utilizados pelo Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Superior Tribunal do Trabalho, respectivamente.
Se por um lado, o uso da inteligência artificial desperta a possibilidade de uma gestão mais racional dos processos, não se pode descurar que, ao lado dessas vantagens, o mundo jurídico se depara com questionamentos relacionados ao abuso na coleta, direito à privacidade e tratamento de dados, questões essas que motivaram a edição de leis recentes, como o marco civil da internet (Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº13.709, de 14 de agosto de 2018).
É certo que ao longo dos anos a comunidade jurídica foi imersa nos conhecimentos tecnológicos, sociológicos, econômicos que interagem com o sistema jurídico dos diversos países, com grande repercussão na jurisprudência. No Brasil, especificamente, o adensamento dos debates tomou conta das Escolas Judiciais, das Escolas Superiores de Advocacia e da comunidade acadêmica, produzindo farto material sobre os impactos da tecnologia da informação e digitalização das relações sociais, com papers, dissertações e teses que abarcam o vasto espectro da influência da chamada 4ª revolução industrial.
Isso permite um maior grau de maturação das discussões jurídicas, com vários projetos de lei tramitando no parlamento brasileiro para regular o fenômeno, e certa inflexão jurisprudencial que abre possibilidades para a compreensão da sociabilidade do trabalho nesta nossa configuração tecnológica do capitalismo avançado e seus impactos nas sociedades periféricas como a brasileira.
Ante aos novos desafios instaurados pela aplicação de novas tecnologias no mundo jurídico e no mercado de trabalho, a 3ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho da Anamatra pretenderá fomentar espaço para que magistrados, procuradores do trabalho, auditores do trabalho, advogados e demais profissionais do Direito possam debater sobre a temática, a fim de organizar enunciados para facilitar a pesquisa e atuação dos profissionais que lidam com o Direito do Trabalho.
2. Objetivos
I – aprofundar o debate e elaborar enunciados que versem diretamente sobre os principais temas decorrentes do chamado trabalho em plataformas digitais, para servir a todos os operadores da área jurídica (juízes, advogados, procuradores do trabalho, auditores-fiscais do trabalho etc.) como base de apoio e parâmetro à aplicação da legislação processual e material, bem como servir de base científica e social para a alteração regulatória que vise dar concretude a direitos constitucionais e ambientais aos trabalhadores envolvidos nessa forma de prestação de serviços;
II – firmar-se como fórum amplo de debate entre os operadores do direito na Justiça do Trabalho sobre os temas relacionados com a “prestação de trabalho em plataformas digitais”;
III – estimular o debate e o acúmulo crítico sobre os temas em questão e produzir um conjunto orgânico de orientações, sob a forma de enunciados aprovados nas Comissões Temáticas e na Plenária, visando subsidiar os debates acadêmicos e jurisprudenciais;
IV – apresentar propostas jurídicas concretas com o objetivo de permitir a melhor interpretação das normas alteradas e de oferecer alternativas para a reafirmação dos princípios e a concretização dos objetivos do Direito do Trabalho;
V – contribuir para o aprimoramento científico do Direito do Trabalho e do Direito Processual do Trabalho, por meio do oferecimento de novos conceitos, novas propostas e uma leitura atualizada dos institutos materiais e processuais vigentes.
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(1) UNIÃO EUROPEIA. Assessing the size and presence of the collaborative economy in Europe, 2016. Disponível em: https://publications.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/2acb7619-b544-11e7-837e-01aa75ed71a1. Acesso em 1 set. 2017.
(2) PWC UK. The sharing economy: Sizing the revenue opportunity, 2014. Disponível em: https://www.pwc.fr/fr/assets/files/pdf/2015/05/pwc_etude_sharing_economy.pdf. Acesso em 20 jun. 2018.
(3) UNIÃO EUROPEIA. Assessing the size and presence of the collaborative economy in Europe, 2016. Disponível em: https://publications.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/2acb7619-b544-11e7-837e-01aa75ed71a1. Acesso em 1 set. 2017.
(4) BENKLER, Y. Sharing Nicely: On shareable goods and the emergence of sharing as a modality of economic production. The Yale Law Journal, v. 114, p. 273-358, 2004.
(5) MASELLI, Ilaria. GIULI, Marco. UBER: Innovation or déja vu? Centre For European Policy Studies – 25 fevereiro 2015. Disponível em: https://www.ceps.eu/publications/uber-innovation-or-d%C3%A9ja-vu. Acesso em 11 jun. 2018.
(6) BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Inteligência artificial vai agilizar a tramitação de processos no STF http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=380038
(7) BRASIL. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Sistema Bem-te-vi. Gestão de Acervo Processual. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/web/estatistica/bem-te-vi>. Acesso em: 30 jan.2020.
(8) AGU aposta em inteligência artificial e automação de processos para agilizar trabalhos jurídicos. Disponível em: <https://agu.jusbrasil.com.br/noticias/100362832/agu-aposta-em-inteligencia-artificial-e-automacao-de-processos-para-agilizar-trabalhos-juridicos > Em: 05.02.2020.